quarta-feira, janeiro 18, 2006

O tempo de Mário Soares

Como no Público está fechado a cadeado, roubei este texto ali no Da Literatura.
A análise de Eduardo Lourenço, são os olhos da história.

«A campanha eleitoral não tem sido exactamente aquele torneio político exemplar que alguns idealistas impenitentes sonharam. Faltou-lhe paixão e sobraram escusadas flechas em forma de boomerang. [...] Trazer para esta sociedade, mais do que nunca sociedade de espectáculo, o eco da antiga paixão portuguesa, quer a recalcada do antigo regime, quer a exaltada e exaltante das duas décadas após Abril, era uma aposta arriscada, para muitos perdida e, em todo o caso, objectivamente quixotesca. Filho desses dois tempos, de que foi actor político precoce e, depois, personagem histórico, Mário Soares ousou trazer de novo para uma arena pública, já longe desses tempos turbulentos, essa antiga paixão política, sem querer saber se estaria ou não fora de estação. Passada a surpresa, esta audácia quase juvenil do antigo Presidente da República foi recebida com cepticismo por muitos, com sarcasmo por outros e, sobretudo, como uma ocasião inesperada para ajustar contas antigas e menos antigas com o homem que, melhor do que ninguém, de entre os activos, se identificou e é identificado com a Revolução de Abril e, em particular, com o tipo de democracia que ela instaurou em Portugal. [...] O mundo é que não é exactamente o mesmo mundo onde essa aventura pessoal e transpessoal foi possível. E esse mundo tinha de mudar, não o homem Mário Soares, mas a imagem dele no espelho alheio. O mesmo homem que, em tempos, passou entre nós como “o amigo americano” quando isso significava que o destino da nossa frágil democracia implicava alinhamento com a primeira das democracias ocidentais, aparece, hoje, aos olhos dos que têm interesse em cultivar essa vinha, como “antiamericano”, o que é, naturalmente, ainda mais simplista do que a antiga etiqueta. A única verdade desta valsa ideológico-mediática é clara: o antigo mundo que foi, durante décadas, o do horizonte da luta política de Mário Soares, funciona em termos de repoussoir — e Mário Soares, mais fiel aos seus ideais de sempre do que se diz, aparece, em fim de percurso, mais à “esquerda” do que nunca o foi. [...] Este tempo de Mário Soares não é apenas o tempo de Mário Soares. É o de várias gerações que, como ele, num mundo então histórica, ideológica e culturalmente dividido entre “direita” e “esquerda”, não apenas no Ocidente mas à escala planetária, escolheu um campo, numa época em que não escolher era ficar fora, não apenas do combate político, mas do combate da vida. É inócuo e só na aparência, prova de imaginária lucidez, pensar que esse comportamento releva de uma versão simplista e maniqueísta do mundo. Essa era a textura do mundo e da história que nos coube viver e só quem pretende viver fora deles se imagina sobrevoá-los como os anjos. É uma bela aposta a de Mário Soares, perdida ou ganha. Com a sua carga romanesca e a sua trama paradoxal. Mário Soares não é — nem a título histórico, nem ideológico — toda a esquerda portuguesa, mas nunca foi mais representativo dela, da sua utopia e das suas inevitáveis miragens, do que hoje, quando, aos oitenta anos, se apresenta como alguém, dentro dessa escolha, susceptível de incarnar ainda, melhor do que ninguém, essa velha aposta que entre nós nasceu com Antero e teve em António Sérgio, entre outros, as suas referências culturais, infelizmente mais vividas com sugestões poéticas do que propriamente políticas. Dizem-me que os dados há muito estão lançados e mesmo que os jogos estão feitos. Não o duvido. [...] Os seus adversários neste combate inglório e soberbo foram sempre outros. Não só os que se lembram do seu militantismo juvenil, como os que não esquecem a sua conversão definitiva ao socialismo democrático, mas, sobretudo, os que nunca lhe perdoaram o ter lutado pela democracia em Portugal, antes e depois de Abril. É isso que a verdadeira direita não esquece. É muito mais gente do que se supõe. É a mesma que põe na sua conta, como uma mancha indelével, a absurda culpa de ter “perdido” uma África que ninguém “perdeu” senão ela. [...] A esquerda não o traiu, nem ele se traiu nela. O drama é que essa esquerda de que pela última vez se faz paladino é, ao mesmo tempo, uma realidade — embora ideologicamente recente — e uma quimera. O problema da esquerda nunca foi a direita [...] mas a esquerda mesmo como pura transparência da história. A esquerda, sendo em intenção mais virtuosa, não é menos opaca, no seu angelismo imaginário, que a mais obtusa direita. Sobretudo quando não se dá conta disso. Em alegoria caseira, estas nossas eleições tão consensualmente democráticas, ilustraram com suavidade à portuguesa esta fatalidade. O combate no interior da nossa suicidária esquerda foi, à sua maneira incruenta, uma espécie de Alfarrobeira política. Talvez algum cronista, no futuro se inspire nela para nosso ensino inútil. Ou um poeta. Mas não terá Mário Soares.»

2 Comentários:

Às 18/01/06, 14:55 , Blogger j disse...

Exactamente o que eu sinto, dito como ninguém por Eduardo Lourenço.
Ainda que não pense como ele e que, muitas vezes, o tenha entendido mais como adversário do que como "amigo", não tenho qualquer dúvida em subscrever estas palavras.
Os tempos estão difíceis, os cidadões deixaram de acreditar que é a ideologia que está por trás de qualquer político. Se os homens da nossa geração são acusados de ter lutado por utopias, os de hoje passarama a crer que chegámos mesmo "ao fim da História".
Os vindouros pagarão muito caro por termos hoje vendido a alma ao diabo... do dinheiro. Um regime que apenas acredita no lucro pelo lucro só pode agudizar, até ao limite insuportável, a "luta de classes". Não te arrepies, caro Amigo! Tal como a globalização, a luta de clases ou o seu fim não se acaba por decreto ou pela mera vontade de pretender acreditar nela... Quod volumus, facile credimus... E este é que é o erro crasso em que estão a cair as novas gerações.
É por isso que eu levo muito a sério o que diz Eduardo Lourenço.

 
Às 19/01/06, 02:38 , Anonymous Anónimo disse...

eformas, subsídios de desemprego, rendimentos de inserção, etc.
O povinho português não se lembra dos anos 50 e 60 quando isso aqui rea sonho. Aí existiam mesmo pobres e desvalidos. Hoje há trafulhas,calaceiros, chicos-espertos, vários tipos de "dependentes" e de borlistas do erário público.A democracia portuguesa transformou-se numa grande escola de gamanço, desresponsabilização. Porque nós não sabemos outra: Ou temos um magrizelas provinciano conservador e pindérico a mandar em nós: Salazar, Sá Carneiro, Eanes, Cavaco, por ex. ou entretemo-nos a desprezar, por ignorância e por INVEJA, as mentes brilhantes q

 

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial