quarta-feira, abril 13, 2005

Rua do Desterro (2)

Com a devida vénia ao meu amigo Victor Hugo Castro que reside em Paris e visita habitualmente A Forma e o Conteudo, permito-me reproduzir o seu comentário ao texto "Rua do Desterro", não vá passar despercebido aos mais distraídos:

"Lindamente dito e agradavelmente evocador, para mim, dos primeiros anos que vivi em Lisboa.
Era na Rua do Desterro que se encontrava a pensão sem nome onde, por conselho de amigos que me adivinharam limitado em finanças, me fui hospedar, quando cheguei à capital. Sem nome, de facto, mas designada pelos hóspedes – na maioria, jovens estudantes ou empregados do comércio vindos da «província», como diziam os alfacinhas – «Pensão Cachucho».
O epíteto fazia referência ao prato de peixe servido, vezes sem conta, ao longo do ano. Mas o interesse da «Pensão Cachucho» não estava na qualidade do seu serviço de mesa, nem da dos outros, diga-se de passagem. Estava no ambiente familiar, íntimo, quase secreto que ela oferecia àqueles clientes de verbo exuberante, conspiratório, e ávidos de aventura, de mudança, de liberdade.
A sala de jantar era numa enorme varanda que dava para as traseiras do prédio e se sobrepunha aos quintais e jardins dos habitantes do rés-do-chão. Coberta e fechada no Inverno, com painéis de plástico translúcido, dispunha de uma única mesa, corrida de ponta a ponta. Ali se tomavam as refeições, em comum e a horas certas, e se discutia de tudo aquilo que não se podia falar lá fora. As «novidades» que os estudantes traziam das escolas e os rumores que os caixeiros apanhavam na rua eram o fole que espevitava o fogo das conversas.
- “Então já sabem que a PIDE matou um pintor, próximo daqui ? Vocês não ouviram nada, ontem à noite? Eu até ia jurar que ouvi os tiros!”- “Ninguém apanhou o panfleto que o Henrique Galvão andou a espalhar pela Baixa, de avião ?
E dali saíam os alvitres mais ousados, as projecções mais inverosímeis, muitas vezes divergentes no sentido, mas todos a preludiar a revolução que se queria acreditava eminente. Quando faltava matéria ou os humores não estavam receptivos, havia o cinema do quarteirão, em Almirante Reis, a dois passos dali, e a escapada ao «Come e Bebe», nas Porta de Santo Antão, para se comer o prego e beber a imperial que compensariam a frugalidade do jantar.
Nos inícios de mês, com a bolsa ainda em bom estado, não era raro que a preferência fosse para a «Portugália», um pouco mais acima, na direcção da Alameda, onde o prego e a imperial eram servidos à mesa, durante a projecção do filme, ao ar livre. Um regalo! "

1 Comentários:

Às 13/04/05, 18:09 , Blogger j disse...

Ora bolas! Logo hoje, que estou em dia de reminiscência fácil e um tanto a botar para o nostálgico!!!
Não conheci a "Pensão Cachucho", mas vivi muito do restante "enredo". Desde o "Come e bebe" até à Riba Douro. Desde a conversa fiada até à abertamente conspirativa. Desde a discussão filosófica até aos "planos" para a revolução.
Ora bolas! O tempo passou depressa.
Não sou saudosista (de modo nenhum), mas tenho saudades.
(jcm)

 

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