Rua do Desterro
É como um bolo de noiva, o prédio de branco listrado, numa rua entre dois hospitais. Não chegam a meio metro, as sacadas de portas fechadas, perdido o vício antigo de ver quem passa. Agora, nos varandins verdes, murcham bandeiras com saudades do Euro 2004.
No segundo andar, há uma águia embalsamada que já se cansou de voar sobre os vasos das sardinheiras, e ergue uma enorme bandeira do Benfica, na esperança de um milagre no fim do campeonato.
1 Comentários:
Lindamente dito e agradavelmente evocador, para mim, dos primeiros anos que vivi em Lisboa.
Era na Rua do Desterro que se encontrava a pensão sem nome onde, por conselho de amigos que me adivinharam limitado em finanças, me fui hospedar, quando cheguei à capital. Sem nome, de facto, mas designada pelos hóspedes – na maioria, jovens estudantes ou empregados do comércio vindos da «província», como diziam os alfacinhas – «Pensão Cachucho». O epíteto fazia referência ao prato de peixe servido, vezes sem conta, ao longo do ano.
Mas o interesse da «Pensão Cachucho» não estava na qualidade do seu serviço de mesa, nem da dos outros, diga-se de passagem. Estava no ambiente familiar, íntimo, quase secreto que ela oferecia àqueles clientes de verbo exuberante, conspiratório, e ávidos de aventura, de mudança, de liberdade.
A sala de jantar era numa enorme varanda que dava para as traseiras do prédio e se sobrepunha aos quintais e jardins dos habitantes do rés-do-chão. Coberta e fechada no Inverno, com painéis de plástico translúcido, dispunha de uma única mesa, corrida de ponta a ponta. Ali se tomavam as refeições, em comum e a horas certas, e se discutia de tudo aquilo que não se podia falar lá fora. As «novidades» que os estudantes traziam das escolas e os rumores que os caixeiros apanhavam na rua eram o fole que espevitava o fogo das conversas.
- “Então já sabem que a PIDE matou um pintor, próximo daqui ? Vocês não ouviram nada, ontem à noite? Eu até ia jurar que ouvi os tiros!”
- “Ninguém apanhou o panfleto que o Henrique Galvão andou a espalhar pela Baixa, de avião ?
E dali saíam os alvitres mais ousados, as projecções mais inverosímeis, muitas vezes divergentes no sentido, mas todos a preludiar a revolução que se queria acreditava eminente.
Quando faltava matéria ou os humores não estavam receptivos, havia o cinema do quarteirão, em Almirante Reis, a dois passos dali, e a escapada ao «Come e Bebe», nas Porta de Santo Antão, para se comer o prego e beber a imperial que compensariam a frugalidade do jantar. Nos inícios de mês, com a bolsa ainda em bom estado, não era raro que a preferência fosse para a «Portugália», um pouco mais acima, na direcção da Alameda, onde o prego e a imperial eram servidos à mesa, durante a projecção do filme, ao ar livre. Um regalo!
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