quarta-feira, abril 25, 2012

Um dia diferente


"Voltam para a varanda e acompanham o avanço dos carros de combate até estacarem a alguma distância da outra tropa. Parecem medir forças. Soldados esforçam-se por manter as distâncias, mas há cada vez mais gente atrás dos tanques
- Deus nos livre se houver um tiro! – suspira Abílio Tomás, seguindo o vaivém dos emissários.
Ninguém recua nem está disposto a ceder. Não param, os motores dos tanques, a resfolegar para a investida.
Quem será o oficial de lenço branco que enfrenta agora os carros de combate? Guia-o a certeza das causas justas e arma-o a coragem dos heróis que morrem cedo, vivendo para sempre no coração dos povos. É a multidão sustida a custo pelos soldados que lhe dá força, inclinando a seu favor a balança da história. Teme-se a tragédia. Os segundos parecem horas, mas ninguém se atreve ao disparo fatal. Cecília protege-se no abraço de Luís, mas o que ouve não são tiros. É a alegria do povo a receber a liberdade no lenço branco daquele oficial que regressa ao nascer do sol, levando consigo os monstros já domesticados.
- Somos livres, meu amor – não se contém, abraçando Luís espontaneamente.
Repara no espanto do pai, na outra ponta da varanda, e lembra-se do que tem para lhe dizer. Solta-se dos braços do amado e puxa-o para junto deles. Abílio Tomás obedece a contragosto.
 - Que se passa?! – questiona Luís, intrigado com a encenação.
Mas Cecília é uma menina travessa que faz o que quer daqueles dois e ri-se do seu  ar embasbacado, fitando-os com os olhos de encanto. Abraça-se ao pai, no momento de lhe dar a novidade:
 - Estou grávida!
Ambos se confundem na emoção das lágrimas. Luís tem medo de acreditar na sorte de um só dia e tarda a recuperar do choque de saber que vai ser pai. Mas não chora. As lágrimas gastou-as na secura dos desertos que atravessou. É Cecília que vem arrancá-lo ao seu torpor.
- Não ficaste satisfeito?
Beijam-se, sem palavras, ao sol que venceu finalmente as nuvens da manhã. Distraem-se do rádio que anuncia movimentações no Largo do Carmo e mal ouvem a voz cava de Abílio Tomás a sair do gabinete. 
- Que sejam felizes…


Era o passaporte da felicidade. Em breve se abrirão também os ferrolhos que tentam retardar a liberdade. Luís sorri, acreditando finalmente.
- Vamos para a rua!
Correm de mão dada pelo passeio, como crianças em dia de aniversário. Têm pressa de mostrar o seu amor e festejar com toda a gente a vida que fizeram nascer. Respira-se outro ar e já perderam o medo às palavras. Nem dão pelo sinal de trânsito onde a PIDE se encostava para espiar Luís. Era o sentido proibido que os tanques derrubaram.
- Devagar querida, olha o bebé! – lembra-se Luís, subitamente.
Um contínuo, que aguardava por ordens à porta da Câmara Municipal, não viu bebé nenhum e apurou o ouvido, intrigado.
- Foi também aqui que mataram D. Carlos em 1908 e foi proclamada a República em 1910 – disse o rapaz, apontando para onde ainda há pouco manobravam os tanques.
- Que dia é hoje? - perguntou a rapariga, mais preocupada com outras datas.
- Vinte e cinco de Abril! – ouviu-se, quando dobravam a esquina do largo. "

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