Praça Salazar
"Tinha das guerras de África a visão cinzenta das imagens da televisão pelo Natal: Sebastião das Berças deseja a todos um Feliz Natal e beijinhos para a minha madrinha de guerra. Adeus, até ao meu regresso. As mensagens repetiam-se, dias a fio, desatando um caudal de emoções que estremecia o país. Crestados pelo sol africano, os rapazes desfilavam à frente das câmaras, repetindo uma ladainha decorada para adormecer as consciências. Traía-os a inquietação dos olhos confusos que adensava a desconfiança de um povo acomodado à rotina das baixas informadas a conta-gotas.
Ainda se lembrava da manifestação do Terreiro do Paço, onde se juntou um mar de gente para apoiar a guerra. Discursos inflamados incitavam uma turba exacerbada, pronta a enfrentar o mundo inteiro. Camponeses sem eira nem beira pareciam dispostos a lutar por terras que nunca haveriam de lavrar. Luís circulou pelo meio da multidão, intrigado com a transfiguração daqueles rostos afectados por uma loucura colectiva. Como girassóis à espera do sol, olhavam todos na mesma direcção, aguardando um sinal ou uma palavra de ordem que os catapultasse para o frenesim irresponsável das multidões. Bastava uma pausa, ou um brado mais acalorado, para se unirem num grito uníssono: Salazar! Salazar! Salazar! Luís tentou identificá-lo, mas não o distinguiu entre os vultos sem rosto, apinhados na varanda por cima dos correios. Apenas lhe ouviu a voz de falsete soluçante, estilizada no vaivém sonoro dos altifalantes. “Se calhar era uma gravação”, alvitrou Pedro, quando lhe contou.
No fim, quando os altifalantes se calaram, os rostos regressaram à vulgaridade anónima, tão familiar. Apanhado pela avalanche que se precipitou para as saídas da praça, Luís ia sendo esmagado pela pressão da turbamulta que se afunilou na entrada da Rua do Ouro.
Algum tempo depois, não recordava nada dos discursos. Ficara-lhe apenas a imagem duma multidão sem cabeça, reagindo por instinto às vozes dos oradores. " (in Rua do Arsenal)
Ainda se lembrava da manifestação do Terreiro do Paço, onde se juntou um mar de gente para apoiar a guerra. Discursos inflamados incitavam uma turba exacerbada, pronta a enfrentar o mundo inteiro. Camponeses sem eira nem beira pareciam dispostos a lutar por terras que nunca haveriam de lavrar. Luís circulou pelo meio da multidão, intrigado com a transfiguração daqueles rostos afectados por uma loucura colectiva. Como girassóis à espera do sol, olhavam todos na mesma direcção, aguardando um sinal ou uma palavra de ordem que os catapultasse para o frenesim irresponsável das multidões. Bastava uma pausa, ou um brado mais acalorado, para se unirem num grito uníssono: Salazar! Salazar! Salazar! Luís tentou identificá-lo, mas não o distinguiu entre os vultos sem rosto, apinhados na varanda por cima dos correios. Apenas lhe ouviu a voz de falsete soluçante, estilizada no vaivém sonoro dos altifalantes. “Se calhar era uma gravação”, alvitrou Pedro, quando lhe contou.
No fim, quando os altifalantes se calaram, os rostos regressaram à vulgaridade anónima, tão familiar. Apanhado pela avalanche que se precipitou para as saídas da praça, Luís ia sendo esmagado pela pressão da turbamulta que se afunilou na entrada da Rua do Ouro.
Algum tempo depois, não recordava nada dos discursos. Ficara-lhe apenas a imagem duma multidão sem cabeça, reagindo por instinto às vozes dos oradores. " (in Rua do Arsenal)
1 Comentários:
Por mais que custe a todos os que, desta forma, aviltam a Liberdade e a Democracia, a "praça" vai ter o mesmo fim que todas as outras supostas "homenagens": o caixote do lixo da história e das nossas recordações.
O mesmo fim que as condecorações aos agentes da PIDE que, em tempos, o actual PR entendeu atribuir.
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