"Voltam
para a varanda e acompanham o avanço dos carros de combate até estacarem a
alguma distância da outra tropa. Parecem medir forças. Soldados esforçam-se por
manter as distâncias, mas há cada vez mais gente atrás dos tanques
-
Deus nos livre se houver um tiro! – suspira Abílio Tomás, seguindo o vaivém dos
emissários.
Ninguém
recua nem está disposto a ceder. Não param, os motores dos tanques, a
resfolegar para a investida.
Quem
será o oficial de lenço branco que enfrenta agora os carros de combate? Guia-o
a certeza das causas justas e arma-o a coragem dos heróis que morrem cedo, vivendo para sempre no coração dos povos. É a multidão sustida a custo pelos
soldados que lhe dá força, inclinando a seu favor a balança da história.
Teme-se a tragédia. Os segundos parecem horas, mas ninguém se atreve ao disparo
fatal. Cecília protege-se no abraço de Luís, mas o que ouve não são tiros. É a
alegria do povo a receber a liberdade no lenço branco daquele oficial que
regressa ao nascer do sol, levando consigo os monstros já domesticados.
-
Somos livres, meu amor – não se contém, abraçando Luís espontaneamente.
Repara
no espanto do pai, na outra ponta da varanda, e lembra-se do que tem para lhe
dizer. Solta-se dos braços do amado e puxa-o para junto deles. Abílio Tomás
obedece a contragosto.
- Que se passa?! – questiona Luís, intrigado
com a encenação.
Mas
Cecília é uma menina travessa que faz o que quer daqueles dois e ri-se do
seu ar embasbacado, fitando-os com os
olhos de encanto. Abraça-se ao pai, no momento de lhe dar a novidade:
- Estou grávida!
Ambos
se confundem na emoção das lágrimas. Luís tem medo de acreditar na sorte de um
só dia e tarda a recuperar do choque de saber que vai ser pai. Mas não chora.
As lágrimas gastou-as na secura dos desertos que atravessou. É Cecília que vem
arrancá-lo ao seu torpor.
-
Não ficaste satisfeito?
Beijam-se,
sem palavras, ao sol que venceu finalmente as nuvens da manhã. Distraem-se do
rádio que anuncia movimentações no Largo do Carmo e mal ouvem a voz cava de
Abílio Tomás a sair do gabinete.
-
Que sejam felizes…
Era
o passaporte da felicidade. Em breve se abrirão também os ferrolhos que tentam
retardar a liberdade. Luís sorri, acreditando finalmente.
-
Vamos para a rua!
Correm
de mão dada pelo passeio, como crianças em dia de aniversário. Têm pressa de
mostrar o seu amor e festejar com toda a gente a vida que fizeram nascer.
Respira-se outro ar e já perderam o medo às palavras. Nem dão pelo sinal de
trânsito onde a PIDE se encostava para espiar Luís. Era o sentido proibido que
os tanques derrubaram.
-
Devagar querida, olha o bebé! – lembra-se Luís, subitamente.
Um
contínuo, que aguardava por ordens à porta da Câmara Municipal, não viu bebé
nenhum e apurou o ouvido, intrigado.
-
Foi também aqui que mataram D. Carlos em 1908 e foi proclamada a República em
1910 – disse o rapaz, apontando para onde ainda há pouco manobravam os tanques.
-
Que dia é hoje? - perguntou a rapariga, mais preocupada com outras datas.
-
Vinte e cinco de Abril! – ouviu-se, quando dobravam a esquina do largo. "