OS TRABALHOS DE SÍSIFO
João Pinto e Castro
I
No início da Primavera de 2011, um vento de loucura assolou a sociedade portuguesa. Durante os meses seguintes, sucederam-se em catadupa decisões que, desafiando toda e qualquer racionalidade, conduziram o país para uma via perigosa e sem retorno.
Tudo começou com a recusa de uma proposta de ajuda financeira da União Europeia que, evitando o modelo já então aplicado na Grécia e na Irlanda, não só excluía imposições excessivamente duras como reservava para o governo português uma considerável de manobra.
Logo de seguida, a oposição, apoiada pelo grosso da comunicação social (e, muito em especial, pelos mais destacados comentadores económicos), declarou unilateralmente a bancarrota do país, reivindicando por decorrência a plenos pulmões um pedido urgente de resgate sem cuidar demasiado de saber que condições poderiam estar-lhe associadas. Satisfeita a exigência, as forças vivas estenderam uma passadeira vermelha e lançaram foguetes para receber as forças libertadoras da troika desembarcadas com pompa e circunstância no aeroporto da Portela.
Viu-se então um governo demissionário e fragilizado, que usualmente se deveria limitar a funções de gestão, forçado a negociar com a troika em vésperas de eleições antecipadas um acordo que evidentemente condicionaria a governação do país por muitos e muitos anos. Como se isso não bastasse, tanto a oposição como luminárias avulsas pressionaram a troika, pessoalmente ou através da comunicação social, a aplicar mais duras penas a este povo execrável que tão criminosamente se dedicara a viver acima das suas possibilidades.
Conhecido por fim o teor do memorando, foi muito aplaudida a competência dos técnicos alienígenas por, em poucos dias, terem sido capazes de arquitectar o programa de regeneração económica por que o país há décadas ansiava. Porém, não eram ainda decorridos três meses quando o novo primeiro ministro, entretanto eleito, com orgulho revelou ao mundo a sua intenção de agravar a dose da punição que nos fora infligida, indo, assim, “além da troika”.
Eis, porém, que, dois anos de recessão decorridos sobre a assinatura do acordo salvador, com uma mão à frente e um memorando atrás, o mesmíssimo país que há tão pouco tempo exultou com os termos da sua própria condenação, confuso com o rumo que as coisas tomaram, tenta perceber o que se passou e que futuro pode razoavelmente esperar.
II
Em Julho de 2011, um Portugal ansioso teve a honra de ser apresentado ao seu novo Ministro das Finanças. A postura hirta, o discurso arrastado, as olheiras cavadas – todos esses e ainda outros traços do seu aspecto e linguagem corporal foram na altura interpretados como outros tantos sinais de inquestionável génio. Depois, Gaspar chegava até nós vindo directamente do Olimpo da União Europeia e do Banco Centro Europeu, onde os deuses da política, da economia e da finança discutem gravemente e ponderadamente traçam os destinos dos metecos que todos nós somos.
Ainda não tivera tempo para aquecer o lugar, e já Vítor Gaspar identificara um (jamais cabalmente justificado) “desvio colossal” na execução orçamental de 2011, que justificou o anúncio de uma primeira e drástica punção sobre os subsídios de Natal dos trabalhadores por conta de outrem.
Para falar com franqueza, não era bem disso que se estava à espera. Uma boa parte da expectativa positiva em relação ao novo governo – e que aliás em muito facilitara a sua eleição – residia na crença generalizada de que a redução do défice se conseguiria sem dor para a população, nessa altura já muito martirizada pela conjugação dos efeitos da duríssima recessão de 2009 com as medidas de contenção orçamental aplicadas a partir de 2010.
Efectivamente, os partidos de direita, quando na oposição, haviam brandido repetidamente uma lista de medidas inscritas numa folhinha de papel A4 que permitiriam, pelo simples corte nas gorduras do estado (organismos supérfluos) e contracção dos consumos intermédios, eliminar milagrosamente o défice orçamental. Chegou a afirmar-se estarem identificadas oportunidades de redução de despesas do estado de valor equivalente a 4 a 5% do PIB – o que, só por si, resolveria o problema. Sucede que, não sendo isso verdade, o governo prontamente renegou todas as suas promessas eleitorais e foi à procura de outras alternativas, privilegiando designadamente a via do aumento indiscriminado da carga fiscal sobre tudo o que mexe.
Em 2011 e 2012, o governo propôs-se retirar da economia, sob a forma de impostos adicionais ou cortes na despesa pública, 18 mil milhões de euros; todavia, a redução efectiva do défice foi de apenas 5,8 mil milhões. Pelo caminho, desapareceram 12,2 mil milhões, o que dá uma ideia da ineficiência da via escolhida para reduzir o défice e travar o crescimento da dívida.
O que estes números revelam é que o agravamento da austeridade muito para além do que se encontrava previsto no memorando de entendimento inicial teve efeitos muito contraproducentes. Por um lado, mais impostos e menos despesa pública implicaram uma redução drástica do consumo interno e do investimento, o que, por sua vez, gerou menos receitas fiscais efectivas e mais despesas com subsídios de desemprego e outros encargos sociais. Por outro lado, a recessão induzida pelo estado reduziu a base tributária e, por conseguinte, a capacidade de o país pagar a sua dívida externa.
Ou seja, mesmo que aceitemos ignorar por instantes o cortejo de miséria induzida pela austeridade, o facto é que esta política económica nem sequer foi capaz de atingir os objectivos limitados que se propôs de reduzir significativamente o défice e travar o crescimento da dívida. Trata-se, pois, de um fracasso em toda a linha.
Retrospectivamente, até os mais crédulos entendem hoje que tudo recomendava Vítor Gaspar para ministro das finanças de Portugal, menos o seu currículo. Em primeiro lugar, jamais desempenhara qualquer tarefa executiva em toda a sua vida profissional, um óbice de monta para quem se propõe nada menos que reformar um estado e as suas finanças. Em segundo lugar, há um manifesto conflito de interesses na nomeação para principal interlocutor da troika de alguém que acima de tudo anseia ser bem visto pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia, instituições ao serviços das quais esteve e cuja ideologia assimilou ao longo de vários anos.
A contrário da Grécia, da Irlanda, da Espanha, da Itália ou de Chipre, Portugal tem um governo completamente alinhado com a troika, a sua doutrina e as suas exigências. Por isso mesmo, tem hoje, sem dúvida, o programa mais exigente de todos os que estão a ser aplicados a esse grupo de países.
III
A teoria da austeridade expansionista é o fundamento ideológico sobre o qual assentam as políticas económicas e financeiras impostas aos países sob assistência pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional.
Em Abril de 2012, dirigindo-se aos ministros da economia e das finanças da União Europeia, o economista de Harvard Alberto Alesina afirmou, invocando um estudo de 107 episódios de ajustamento fiscal que publicara no ano anterior, que cortes na despesa “grandes, credíveis e decisivos” foram frequentemente seguidos de períodos de crescimento rápido. O impacto dessas palavras pode ser avaliado pelo facto de terem sido citadas no comunicado final da referida reunião.
Instalou-se, assim, nos círculos mais influentes na definição das políticas europeias, a convicção de que a austeridade teria revelado no passado as suas virtualidades como estratégia mais indicada para superar a estagnação e promover o crescimento do que as políticas, alegadamente obsoletas, de estímulo à procura de inspiração keynesiana.
De uma forma apesar de tudo menos taxativa do que Alesina, também Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff incensaram as vantagens da austeridade quando os níveis de endividamento público ultrapassam um determinado patamar. Mais concretamente, indicaram no seu estudo Growth in Times of Debt de 2010 que, quando a dívida pública ultrapassa os 90% do produto, a taxa de crescimento da economia tende a ressentir-se, pelo que só a redução da dívida permite assegurar um crescimento sustentável.
As alegações de Alesina e de Reinhardt e Rogoff foram entretanto amplamente desacreditadas. No que toca ao estudo de Alesina, apenas 27 dos 107 episódios indicados desembocaram em processos de expansão, e isso deveu-se a uma combinação de desvalorizações cambiais com significativas descidas das taxas de juro, circunstâncias que, obviamente, não são relevantes para a presente situação dos países que integram a zona euro.
No caso das investigações de Reinhardt e Rogoff, para além de os autores jamais terem conseguido demonstrar o sentido da causalidade (é o endividamento que causa o baixo crescimento ou é o baixo crescimento que causa o endividamento?), descobriu-se recentemente que o trabalho por eles apresentado padecia de várias falhas graves, incluindo dados estatísticos errados, exclusão de alguns países e procedimentos de ponderação insustentáveis.
Entretanto, já Olivier Blanchard, economista principal do FMI, fizera acto de contrição no World Economic Outlook de 2012, ao reconhecer que a subestimação dos multiplicadores fiscais numa situação económica como a presente tivera como consequência a desvalorização dos efeitos devastadores das políticas de austeridade sobre o emprego que agora estamos a presenciar em toda a Europa, mas, principalmente, nos países sob assistência. Para concluir, Ashoka Mody, o economista do FMI responsável pela estruturação do programa de resgate da Irlanda, que entretanto abandonou a organização, declarou mais recentemente ter chegado à conclusão de que as teorias da “austeridade expansionista” devem ser consideradas completamente equivocadas e contraproducentes.
Como Paul Krugman escreveu, raramente uma teoria económica terá sido tão rápida e completamente testada e desacreditada pelos factos como esta. Apesar disso, escasseiam os sinais de uma inversão decidida da política económico-financeira na União Europeia. Merkel e Draghi acreditam basicamente naquilo que querem acreditar, e nem Lagarde nem Barroso parecem sentir-se embaraçados por produzirem frequentemente sobre o assunto declarações em absoluto contraditórias.
IV
Mau grado as aparências, a chamada crise das dívidas soberanas é, antes de mais, uma crise política, não uma crise económica ou financeira. O que está em jogo é nem mais nem menos que a afirmação da hegemonia indisputada da Alemanha sobre a Europa, à revelia dos tratados livremente assinados e das práticas de estabelecimento de consensos na União Europeia consolidadas ao longo de décadas.
Ao contrário dos EUA, a União Europeia não padece globalmente de desequilíbrios estruturais financeiros externos ou internos. Os problemas só emergem quando se decide dividir a União aos bocadinhos e começar a tratar as suas partes constituintes como situações isoladas sem relação umas com as outras. Foi isso que a Alemanha fez quando, na Primavera de 2010 decidiu, com o apoio do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, que cada país deveria a partir de então tratar dos seus próprios problemas – chegando, na altura, ao ponto de rejeitar liminarmente a mera possibilidade de bail-out a um estado membro. Nesse preciso instante, os investidores descobriram que, ao contrário do que haviam acreditado, na zona euro não existia nenhum emprestador de última instância. Por inescapável decorrência lógica, começaram de pronto a crescer os spreads da dívida dos países em situação mais delicada.
Para sermos mais exactos, a situação presente na União Europeia resulta da conjugação de três circunstâncias que mutuamente se reforçam: a) a vontade de afirmação hegemónica política e económica da Alemanha em variante low-cost; b) a prevalência nos círculos mais influentes do poder monetário e financeiro europeu de doutrinas económicas obcecadas pela redução do peso do estado na economia; c) o empenho dos governos de muitos países europeus na condução de uma guerra social centrada no desmantelamento dos direitos e garantias sociais adquiridos desde a 2ª Guerra Mundial.
O que torna esta coligação particularmente poderosa é a impossibilidade prática de ela ser combatida pelos métodos tradicionais da luta política: não só o voto se tornou ineficaz para determinar as políticas que são aplicadas ao nível nacional, como as instâncias dominantes ao nível europeu (com destaque para o Banco Central Europeu) se revelam totalmente imunes à vontade dos cidadãos europeus. O tradicional “défice democrático” europeu alargou-se nestas circunstâncias de estado de excepção não declarado até quase atingir o carácter de uma tirania à escala continental tutelada pela Alemanha.
O euro não é uma zona monetária propriamente dita. Para que pudesse ser assim considerado teria que incluir uma união bancária, uma união fiscal e um banco central que funcionasse efectivamente como um emprestador de última instância. Na sua presente configuração, o euro funciona apenas e só como um sistema de paridades cambiais fixas que dificulta em extremo processos de ajustamento financeiros como o actual – mas isso é exactamente o que a Alemanha sempre desejou. A ambiguidade, durante tantos anos alimentada pelas instâncias comunitárias, foi finalmente desfeita em 2010. Agora, ao menos, ninguém pode fingir que não entende.
Pressionada pelo primeiro ministro italiano Mario Monti, Angela Merkel pareceu a dada altura aceitar o princípio da criação de uma zona bancária, para evitar que as eventuais crises de insolvência dos bancos ameacem a solvência dos países onde se localizam. Por outro lado, também aderiu passageiramente à ideia da união fiscal, não no sentido da emissão de euro-obrigações em condições bem definidas, mas na de impor a todos os estados membros a “regra de ouro” que os impede de apresentar défices orçamentais. Posteriormente, tendo a intervenção do Banco Central Europeu conseguido reduzir drasticamente os spreads das dívidas dos países em maiores dificuldades, Merkel decidiu unilateralmente adiar discussão de quaisquer transformações para 2014, depois das eleições legislativas alemãs. A Europa pode esperar
Se ninguém consegue arrancar à Alemanha um compromisso inequívoco com a constituição de uma zona monetária, menos sucesso ainda terá com o seu complemento indispensável que é a união política, ou seja, a criação de uma federação europeia com um governo que emane democraticamente de um parlamento europeu eleito pelos povos. A união política seria um embaraço para os planos de hegemonia da Alemanha, por isso nada sugere que seja uma perspectiva viável, até porque o Tribunal Constitucional da república federal já torceu o nariz a seu respeito.
Em conclusão, estaremos apenas a iludir-nos se colocarmos demasiadas esperanças nesse futuro risonho em que uma genuína zona monetária comum será finalmente complementada por uma federação democrática europeia. A manter-se o actual curso das coisas, a União Europeia que haverá nas próximas décadas será, mais coisa menos coisa, aquela que hoje há. Ponto final.
V
Sobrevive entre nós a poderosa ilusão de que, se Portugal cumprir persistente e obedientemente os compromissos assumidos perante a troika, mais cedo do que tarde o país libertar-se-á do presente espartilho e retomará o caminho da prosperidade. Acrescentam alguns que, tendo já sido percorrido um caminho tão árduo (o governo pretende que dois terços do ajustamento estarão completados) seria absurdo desistirmos agora que a meta está à vista. Fazê-lo, argumentam, equivaleria a “morrer na praia”, sendo essa praia o chamado “regresso aos mercados”. Sucede que o que nos espera é o deserto e não a praia. Nada de especial sucederá no dia em que, concluído o período de ajustamento, a troika deixa de visitar regularmente Portugal, porque, como já se tornou claro, a obtenção de financiamento externo depende integralmente da boa vontade do Banco Central Europeu, e esta só existirá se o governo do país continuar a obedecer aos ditames impostos pela União Europeia.
Regressar aos mercados sob a tutela do Banco Central Europeu não só não resolverá nada, como, ainda por cima, tornará menos transparentes as condições associadas ao financiamento. Por outras palavras, neste momento todos sabemos o que nos foi imposto, porque estão escritos e são públicos os documentos que especificam as exigências. Ao contrário, quando desaparecer a troika, entraremos num quadro de maior arbitrariedade, dado que não só o BCE não tem que prestar contas perante nenhuma outra instância comunitária como pode recorrer a um simples e discreto telefonema para transmitir as suas ordens aos governos nacionais (como, de resto, já hoje acontece).
Por outras palavras, mesmo que tudo corra bem (ou seja, que completemos com distinção o processo de ajustamento), tudo correrá mal (isto é, não teremos avançado um milímetro em relação ao ponto em que hoje nos encontramos).
O Tratado Orçamental Europeu imposto em 2012 pela Alemanha como condição para viabilizar futuros aperfeiçoamentos do sistema monetário europeu tem duas consequência imediatas: a) prolonga no tempo a vigência das políticas de austeridade à escala continental; b) reduz drasticamente a margem de autonomia dos estados membros no que toca à sua política fiscal. Não só os países são proibidos de apresentarem défices anuais, como, no caso de Portugal, será necessário reduzir a dívida pública dos actuais 125% do PIB para 60% num horizonte de vinte anos. Por isso alguns responsáveis europeus começaram a falar de décadas de austeridade, com níveis permanentemente elevadíssimos de desemprego (particularmente de desemprego de longa duração e de desemprego jovem), como se se tratasse de algo perfeitamente normal e aceitável.
Os anos Gaspar caracterizam-se pela tentativa de instaurar duradouramente em Portugal um estado de excepção não declarado, como se torna evidente quando algumas vozes argumentam que a própria constituição deveria subordinar-se às imposições da troika. Ainda assim, estamos apenas na antecâmara de uma era de prolongada degradação social e política, num quadro geral de decadência e humilhação nacional.
Como Sísifo, estamos eternamente condenados a empurrar montanha acima um fardo insuportavelmente pesado para, chegados a cume, resvalarmos de volta ao ponto de partida e recomeçarmos o mesmo percurso. Em cada ciclo particular de esforço, não faltará quem nos assegure que estamos quase a chegar ao final das nossas penas. Porém, uma e outra vez, acabaremos por reconhecer a inutilidade dos sacrifícios.
Do modo como as coisas se apresentam, não parece haver lugar para nós dentro do euro.
Lisboa, 1 de Maio de 2013